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Goiânia, 28/11/25
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É simbólica demais a opção pela locação paulista. Pois mais do que uma escolha logística ou financeira, a decisão revela um abandono que é cultural

Coluna do Pablo Kossa: Alguém avisa a Netflix que a tragédia do Césio aconteceu em Goiânia

27/06/2025, às 15:54 · Por Pablo Kossa

Certa vez, assistindo a um jogo do Goiás no Estádio Olímpico com meu avô, elogiei um jogador do Verdão dizendo que o cara passava muito bem. No auge da sapiência que só a experiência oferece, ele me disse: “Espere terminar o jogo para falar bem do cara”. Foi só ele dizer isso que o volante errou um passe no meio de campo que armou um contra-ataque do adversário que quase resultou em gol. É claro que eu não aprendi nada e repito o erro do elogio precipitado ainda hoje.

No final de maio, escrevi um texto aplaudindo a iniciativa da Netflix de produzir uma série contando a história do Césio-137. Por que não segui o conselho do meu avô e esperei para elogiar? Os caras vão filmar tudo no estado de São Paulo. Sim, uma história goianiense terá como cenário a garoa de SP. Ôrra, meu!

O enredo real, chocante e comovente aconteceu em Goiânia. Só que nenhum trecho da série será filmado na capital goiana.

Nenhuma cena. Nenhuma locação. Nenhum frame. Nadica de nada.

Como diz o meme: “aí não, boca de leite!”.

A série Emergência Radioativa, escrita por Gustavo Lipsztein e dirigida por Fernando Coimbra, será gravada inteiramente em São Paulo, tanto na capital quanto numa cidade do interior.

Comenta-se nos bastidores que a falta de apoio do poder público seria uma razão. Pode até ser, mas não justifica. A Gullane Filmes, uma das maiores produtoras do país e responsável pela obra, tem experiência de sobra para saber como funcionam editais e leis de incentivo. Eles se inscreveram nos prazos? Apresentaram projetos e planilhas? Ou tentaram resolver só na conversa? Perguntas precisam ser respondidas.

É simbólica demais a opção pela locação paulista. Pois mais do que uma escolha logística ou financeira, a decisão revela um abandono que é cultural. E aponta o dedo para a ferida que fingimos não ver: se Goiânia não valoriza sua própria história, nem mesmo quando ela ainda pulsa dolorida, quem se dispõe a contar a tragédia também passa por cima dessas chagas.

É óbvio que existe a liberdade artística. Eu posso filmar um filme sobre o Roberto Carlos e dizer que ele nasceu em Caçu? Posso. Eu posso gravar uma série sobre o Led Zeppelin e dizer que o Robert Plant é um tucano de Aruanã? Posso. Eu posso fazer um curta sobre o Rio Amazonas com locação no Capim Puba? Posso. Agora, a distância entre poder fazer e ficar bom/verossímil é grande.

E nunca é demais lembrar que durante o acidente, em 1987, o país, em especial a região Sudeste, virou as costas para os goianos. Fomos alvos de preconceito, medo e isolamento. Corria a notícia de que carros com placa de Goiânia eram apedrejados em São Paulo. Veja você a ironia da coisa: o mesmo estado que nos marginalizou agora conta nossa história sem pisar em solo goiano.

Filmar Emergência Radioativa fora de Goiânia não é só um erro de produção. É uma mutilação simbólica. Uma obra que se propõe a retratar o impacto de uma tragédia deve, no mínimo, respeitar o espaço onde ela aconteceu. O Bairro Popular, Abadia de Goiás, o Ginásio Rio Vermelho... tudo isso é parte inseparável da narrativa.

Talento abunda e currículo há de sobra para que a Gullane entregue algo competente. Mas, no máximo, será uma recriação genérica de uma tragédia real, feita longe do cenário verdadeiro e distante das pessoas que ainda vivem seus efeitos.

Mas se a produção nos escancara esse desrespeito, ela também expõe algo que preferíamos esconder: o nosso descaso sistemático com nossa própria memória. Já disse no artigo anterior: o Governo de Goiás falhou; Goiânia falhou; todos nós falhamos. E parece que agora a Netflix também quer entrar neste rol.


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