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É simbólica demais a opção pela locação paulista. Pois mais do que uma escolha logística ou financeira, a decisão revela um abandono que é cultural
Coluna do Pablo Kossa: Alguém avisa a Netflix que a tragédia do Césio aconteceu em Goiânia
27/06/2025, às 15:54 · Por Pablo Kossa
Certa vez, assistindo a um jogo do Goiás no Estádio Olímpico com meu avô, elogiei um jogador do Verdão dizendo que o cara passava muito bem. No auge da sapiência que só a experiência oferece, ele me disse: “Espere terminar o jogo para falar bem do cara”. Foi só ele dizer isso que o volante errou um passe no meio de campo que armou um contra-ataque do adversário que quase resultou em gol. É claro que eu não aprendi nada e repito o erro do elogio precipitado ainda hoje.
No final de maio, escrevi um texto aplaudindo a iniciativa
da Netflix de produzir uma série contando a história do Césio-137. Por que não
segui o conselho do meu avô e esperei para elogiar? Os caras vão filmar tudo no
estado de São Paulo. Sim, uma história goianiense terá como cenário a garoa de
SP. Ôrra, meu!
O enredo real, chocante e comovente aconteceu em Goiânia. Só
que nenhum trecho da série será filmado na capital goiana.
Nenhuma cena. Nenhuma locação. Nenhum frame. Nadica de nada.
Como diz o meme: “aí não, boca de leite!”.
A série Emergência Radioativa, escrita por Gustavo
Lipsztein e dirigida por Fernando Coimbra, será gravada inteiramente em São
Paulo, tanto na capital quanto numa cidade do interior.
Comenta-se nos bastidores que a falta de apoio do poder
público seria uma razão. Pode até ser, mas não justifica. A Gullane Filmes, uma
das maiores produtoras do país e responsável pela obra, tem experiência de
sobra para saber como funcionam editais e leis de incentivo. Eles se
inscreveram nos prazos? Apresentaram projetos e planilhas? Ou tentaram resolver
só na conversa? Perguntas precisam ser respondidas.
É simbólica demais a opção pela locação paulista. Pois mais
do que uma escolha logística ou financeira, a decisão revela um abandono que é
cultural. E aponta o dedo para a ferida que fingimos não ver: se Goiânia não
valoriza sua própria história, nem mesmo quando ela ainda pulsa dolorida, quem
se dispõe a contar a tragédia também passa por cima dessas chagas.
É óbvio que existe a liberdade artística. Eu posso filmar um
filme sobre o Roberto Carlos e dizer que ele nasceu em Caçu? Posso. Eu posso
gravar uma série sobre o Led Zeppelin e dizer que o Robert Plant é um tucano de
Aruanã? Posso. Eu posso fazer um curta sobre o Rio Amazonas com locação no
Capim Puba? Posso. Agora, a distância entre poder fazer e ficar bom/verossímil
é grande.
E nunca é demais lembrar que durante o acidente, em 1987, o
país, em especial a região Sudeste, virou as costas para os goianos. Fomos
alvos de preconceito, medo e isolamento. Corria a notícia de que carros com
placa de Goiânia eram apedrejados em São Paulo. Veja você a ironia da coisa: o
mesmo estado que nos marginalizou agora conta nossa história sem pisar em solo
goiano.
Filmar Emergência Radioativa fora de Goiânia não é
só um erro de produção. É uma mutilação simbólica. Uma obra que se propõe a
retratar o impacto de uma tragédia deve, no mínimo, respeitar o espaço onde ela
aconteceu. O Bairro Popular, Abadia de Goiás, o Ginásio Rio Vermelho... tudo
isso é parte inseparável da narrativa.
Talento abunda e currículo há de sobra para que a Gullane
entregue algo competente. Mas, no máximo, será uma recriação genérica de uma
tragédia real, feita longe do cenário verdadeiro e distante das pessoas que
ainda vivem seus efeitos.
Mas se a produção nos escancara esse desrespeito, ela também expõe algo que preferíamos esconder: o nosso descaso sistemático com nossa própria memória. Já disse no artigo anterior: o Governo de Goiás falhou; Goiânia falhou; todos nós falhamos. E parece que agora a Netflix também quer entrar neste rol.
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