Poder Goiás
Goiânia, 29/05/24
Matérias
Divulgação

“O João Luiz de Brito é o Katteca, o Katteca é o João Luiz de Brito”, já dizia o cartunista em 1999

Morre em Goiânia Britvs, o criador do Katteca; leia perfil com a história dele

08/04/2023, às 21:19 · Por Luís Cláudio Guedes (especial para o Poder Goiás)

O cartunista João Luiz Brito Oliveira, conhecido como Britvs e criador do personagem “Katteca”, morreu na sexta-feira, 7, aos 71 anos, em Goiânia. Uma das filhas dele, a professora Lorena Advíncula Brito, de 41 anos, contou que o pai morreu por problemas cardíacos. A filha contou que o pai passou mal na madrugada de sexta-feira, por volta de 4h da madrugada, e foi levado ao Hospital Jardim América, onde já chegou inconsciente. Ele teve o óbito confirmado às 17h do mesmo dia. A causa da morte foi apontada como choque cardiogênico, que é uma falha no coração que pode levar a falência de múltiplos órgãos e à morte. O corpo do cartunista foi sepultado no Parque Memorial de Goiânia, neste sábado, 8, por volta das 15h.

O personagem Katteca, criado por Britvs, era um indiozinho que estampava os quadrinhos do jornal O Popular, onde o cartunista trabalhou até o início de 2020. Ele ficou conhecido pelo humor com que tratava assuntos políticos e sociais do estado.

Abaixo, o leitor do Poder Goiás poderá ler um delicioso perfil de Britvs escrito em 1999 pelo jornalista Luís Cláudio Guedes. Entre os entrevistados para o perfil, o então editor Isanulfo Cordeiro, que morreu em 2018, vítima de um câncer.

HUMOR EM TIRAS

Texto de agosto de 1999

A tirinha do Katteca é parada obrigatória para quem lê o jornal O Popular, de Goiânia-GO. O cartunista João Luiz Brito de oliveira, o Britvs, produz uma crítica afiada, marcada pelo bom humor e irreverência. Após 26 anos nas páginas de O Popular, Britvs quer levar o indiozinho Katteca para outras mídias. Para tanto, planeja o lançamento de um livro e de uma revista com os melhores momentos da personagem. Clique acima e descubra as trajetórias do Katteca e de seu criador.

O porta-voz do bom humor

Katteca, o indiozinho aculturado da sátira irreverente de João Luiz  Brito de Oliveira, o Britvs, ganha coletânea dos melhores momentos e vai virar livro

Por Luís Cláudio Guedes Oliveira     

O bom humor, a crítica afiadíssima e a irreverência fazem da personagem Katteca uma referência obrigatória na leitura diária do jornal O Popular, editado pelo grupo J. Câmara e Irmãos S.A, de Goiânia. O índio simpático, criado pelo cartunista João Luiz Brito de Oliveira, um maranhense da cidade de Pastos Bons, já é parte integrante do jornalismo goiano. Katteca estreou em O Popular em junho de 1973 para, em pouco tempo, cair nas graças do público leitor.

João Luiz ou Britvs (assim mesmo na forma latinizada do alfabeto romano, devido a uma paixão antiga pelo gaulês Asterix, outra personagem que avança no tempo), ou simplesmente Katteca, que é como ele prefere ser chamado, está trabalhando atualmente no projeto da edição de um livro e de uma revista que vai trazer o melhor da sua produção ao longo dos últimos 26 anos. O livro, que deveria ter saído em junho do ano passado, mês do aniversário de 25 anos do Katteca, reúne  80 cartuns da personagem e conta com prefácio e comentários de quatro jornalistas, atuais e ex-companheiros de redação. Isanulfo Cordeiro, Domiciano de Faria e Reynaldo Rocha, de O Popular, e Jávier Godinho, do Diário da Manhã, participam desta homenagem.

Dificuldades com patrocinadores adiaram lançamento do livro. Agora, existe uma promessa do governo do Estado de Goiás, através do Consórcio de Empresas de Radiodifusão e Notícias do Estado, o Cerne (atualmente Agência Brasil Central), de bancar a impressão de O Melhor do Katteca - 26 anos de Pura Irreverência, nome desta edição comemorativa. Entusiasmado com a possibilidade de expansão do seu trabalho, Britvs está buscando novas parcerias para editar três edições de uma revista, ainda sem nome definido, com as melhores tirinhas da personagem. Cada número desta publicação terá 70 cartuns e um texto de apresentação do trabalho do cartunista. Britvs não pára, uma de suas próximas empreitadas será a criação de uma home page para o Katteca. Irreverência   on-line e sem fronteiras.

Esquinas da vida
O jornalista e editor-executivo de O Popular, Isanulfo Cordeiro, autor do prefácio do livro, conta que Britvs iniciou sua carreira de desenhista quando ainda trabalhava na banca de revistas situada na esquina da Rua 2 com a Avenida Goiás, no centro de Goiânia, hoje conhecida como banca do Itaú. “Sempre que tinha uma novidade na banca, o Katteca usava de uma estratégia interessante para contar isto para as pessoas: ele desenhava numa cartolina um bonequinho anunciando a chegada da revista tal. Esse bonequinho foi o protótipo do Katteca”, diz Isanulfo.

Relembrando esta época, Britvs diz que os cartazes eram afixados na lateral da banca para atrair a atenção dos transeuntes. “As pessoas paravam, ficavam olhando e diziam: ‘rapaz, por que tu não coloca isto no jornal’. Depois surgiu o jornal O Pasquim e aquilo me influenciou muito, principalmente os desenhos do Henfil”, ele recorda.

Katteca é hoje um indiscutível sucesso de público. A tirinha que retrata as peripécias do indiozinho aculturado é uma das seções mais lidas do jornal. “O quadrinho do Katteca tem uma penetração imensa. Nas pesquisas que realizamos sobre as seções preferidas dos leitores, invariavelmente, a tirinha dele é a que recebe o maior número de indicações”, informa Isanulfo.

A personagem mostra uma deliciosa sátira ao realizar a crítica de costumes e as denúncias social e política do  Estado de Goiás. A crítica é, sem dúvida, uma característica marcante no trabalho do nordestino Britvs. Na opinião do jornalista Reynaldo Rocha, esta percepção aguda do criador do Katteca foi adquirida durante a observação diária daquela “janela privilegiada” que foi, e continua sendo, a esquina da Rua Dois com a Avenida Goiás. Isanulfo corrobora esta tese. “O Katteca é um arguto observador da cena goianiense”

Batismo
A chegada dos  dois Kattecas , o criador e a criatura em O Popular, guarda algumas controvérsias. Segundo Isanulfo, o responsável pelo surgimento da personagem teria sido o também jornalista Jávier Godinho, então chefe de redação de O Popular, e atualmente no Diário da Manhã. Jávier passava com freqüência pela banca do Itaú e sempre se detinha para apreciar os desenhos na cartolina. Certa feita, faltou um ilustrador na redação e Jávier atravessou a rua (o jornal nesta época ainda ficava na Avenida Goiás) e chamou o Britvs para suprir esta ausência.

Britvs, entretanto, tem outra versão. Influenciado pelo trabalho do Henfil no O Pasquim, foi ele quem teria cruzado a Goiás em busca de uma oportunidade. “O meu desenho era feio, esquisito mesmo, então eles olhavam e diziam assim: ‘não,  volta depois!’.  Um dia eu pensei: gente, para por meus desenhos no jornal, eu preciso trabalhar lá!”. O primeiro trabalho de Britvs, contudo, foi publicado pelo extinto jornal Cinco de Março. Não era ainda o Katteca, apenas ilustrações sem uma identidade definida. O Katteca, no formato atual, foi uma imposição do jornalista Domiciano de Faria. Britvs diz que para publicá-lo em O Popular, Faria exigiu que aquele “bonequinho” de pena e tanga tivesse ao menos um nome.

Katteca, o cartunista, se diz um apaixonado pela história da catequização do índio brasileiro pelos padres jesuítas. O nome da personagem vem da fusão dos sons das palavras catequese e carateca - artes marciais é outro hobby dele. Originalmente, o indiozinho trazia uma garrafa de cachaça pendurada na cintura, presa por uma imbira. O autor diz que este era uma espécie de  protesto pictórico contra a civilização do homem branco que provoca a destruição da cultura indígena. Acontece que o Katteca veio às tiras na fase mais complexa da ditadura militar e a Funai (ou o órgão equivalente) tanto implicou que a garrafa da “branquinha” foi suprimida da já restrita indumentária do Katteca.

No meio do povo
A personagem vai assumindo, ao longo do tempo, outras facetas. Atualmente, as mais comuns são o repórter e o garçon, sempre acompanhado pelos indefectíveis microfone e a bandeja de bar. Mas o Katteca é também o homem do povo, o usuário dos serviços públicos, o marido que sofre com os humores da patroa, o cidadão comum em sua rotina de dificuldades. Ele é o anti-herói por excelência e as suas reivindicações são também reivindicações do leitor do jornal.

“Ele tem um faro excepcional para as coisas do dia-a-dia e este é o sentido do seu humor. O Katteca sabe pinçar um fato corriqueiro e transformar aquilo numa espécie de reportagem do cotidiano”, atesta Isanulfo. Para o chargista Jorge Braga, também de O Popular, a simplicidade da linguagem do Katteca é o “grande lance” do seu sucesso. “Às vezes a pessoa tem que estar muito bem informada para entender uma charge como a minha. O Katteca não, ele pega o dia-a-dia e joga tudo ali mastigadinho, do jeito que o povão entende”.

A tirinha do Katteca assume a instância de uma quase tribuna popular. Nela, o leitor se sente intimamente vingado das injustiças das quais é vitima. Britvs revela que a leitura dos jornais, o noticiário da TV e do rádio e, sobretudo, o contato direto com o povo nas ruas, são os mananciais dos quais ele se vale na busca da inspiração que vai detonar o processo criativo. “Eu ando a pé, de  ônibus e fico vendo o sofrimento do povo. Vou ao Detran, vou a Prefeitura e fico ali na fila sentindo na pele os problemas que o povo enfrenta, ai me dá o estalo para criar o desenho”. Das ruas vêm também as inúmeras sugestões para que as chamadas “piadas de salão” sejam protagonizadas pelo Katteca: é o sucesso do medicamento viagra entre os velhinhos, são as agruras do funcionário público e o seu mínimo salário, é o custo de vida, a crítica dos costumes, coisas assim.

“Desenhar florzinhas”
Cáustica como é, a crítica de Britvs também suscita reações que não são exatamente bons exemplos de senso de humor. Numa de suas tirinhas, há alguns anos, ele deixou subentendido que os diabéticos  podem padecer com problemas de disfunção erétil. Deu um qüiproquó danado. A presidente da Associação dos Diabéticos de Goiás, que ele nem sabia da existência, promoveu uma veemente campanha em torno do assunto e o jornal acabou recebendo algumas dezenas de cartas-protesto.

“Certa feita eu fiz uma piada com o Santillo (Henrique Santillo, ex-ministro da República, ex-governador e ex-secretário da Saúde do Estado de Goiás) e acabei levando 15 dias de gancho (suspensão no trabalho). Este acontecimento me deixou muito chateado, pensei até mesmo em parar de fazer o Katteca. Eu disse assim: ‘vou vender côco na Bahia que eu ganho mais’. Rapaz, a repercussão foi tão grande, com os leitores se manifestando, que eu tive que voltar. Eu me senti valorizado”, ele diz. Hoje, afirma Britvs, a liberdade é  total. “Eu falo mal até do patrão”, resume. O autor das tirinhas mais lidas no Centro-Oeste  também é dado a tiradas.

Noutra ocasião, quando o patriarca Jaime Câmara ainda era vivo, Britvs fez uma piada com o general Golbery do Couto e Silva, uma figura de peso nos bastidores do período da ditadura militar. O velho Câmara rezava pela cartilha da Arena, o então partido do Governo, e Britvs não conseguiu, por mais que tentasse evitar, o encontro com o patrão para o necessário corretivo. Ele se diverte contando a bronca que levou: “Rapaz, o homem ficou bravo. Ele me chamava de ‘Seu Caneca’. Aí ele me chamou lá no escritório e falou: ‘Seu Caneca, eu já falei pro senhor que é pro senhor desenhar é borboletinha, é florzinha, é coisa prá  minino (capricha na entonação) seu Caneca. O senhor não entende nada de política, seu Caneca’. Foi desse jeito”. Incorrigível, ele atenuava por uns dias a sua verve crítica para, pouco tempo depois, cutucar outros vespeiros.

Olhar cirúrgico
Até de racismo o Katteca já foi acusado, tudo fruto desta irresponsabilidade ingênua de que o Britvs parece ser um portador congênito. “Já tive um início de processo por racismo, mas a (empresa) Jaime Câmara entrou pelo meio e a coisa não caminhou. Era uma piada do sujeito de cor negra que passeava pelo zoológico levando uma criança pela mão. Ao se aproximar da jaula do gorila, este o chama e diz: ‘Ô negão, me dá aí o telefone do seu advogado que eu também, quero sair daqui’.  Esse negócio deu rolo”, ele conta. Mais politicamente incorreto impossível. O fato é que o presidente de uma destas entidades que lutam em favor da consciência negra era também advogado e não gostou nada do tom jocoso da tirinha. Britvs diz que não costuma passar recibo, afinal, tudo não passa de brincadeira sem a menor intenção de atingir quem quer que seja.

A capacidade de síntese que o Katteca, novamente o artista, consegue imprimir ao seu trabalho é resultado da sua experiência como repórter fotográfico em O Popular. Quando ele cismou que precisava de um emprego na empresa dos Câmara para ver o seu desenho publicado em um jornal, procurou aprender, sempre como auto-didata, os segredos da fotografia. O jornalista Isanulfo tem mais uma definição precisa para este “olhar privilegiado” que o Britvs tem do mundo que o cerca. “Quando aprendeu a manusear a objetiva, ele conseguiu captar o ângulo exato que o leitor deseja ver sobre um determinado acontecimento”. Na mosca.

O Katteca tem uma precisão cirúrgica para apreender e tornar engraçado o objeto da denúncia social. “É comum as pessoas me perguntarem como é que consigo botar tanta coisa dentro daqueles quadrinhos”, revela Britvs. “Noutras vezes, o leitor tem uma interpretação totalmente diferente da minha e cria coisas novas em cima do desenho”.

A grife do índio
Britvs afirma que vive atualmente exclusivamente da renda que a sua personagem proporciona. Ele lastima as propostas que já recusou sob o pretexto de não descaracterizar a imagem do Katteca. “Eu era muito bobo. Hoje não, hoje o Katteca é inteiramente comercial”, ele informa. Jávier Godinho, o primeiro chefe de Britvs, entrega que o ex-colega peca pela falta de perseverança. “Olha, ele já foi dono de um depósito de material de construção, de uma academia de ginástica, uma serigrafia, e mais recentemente, fiquei sabendo que ele estava transportando turistas para Caldas Novas e região do rio Araguaia. Ele é assim, começa um projeto e daqui a pouco larga tudo. Ele é meio maluco, mas tem um talento fora do comum. Às vezes, nem uma página inteira consegue contar o que ele sintetiza em dois ou três quadrinhos”.

Para o criador do Katteca, a verdade é que “ser patrão é muito difícil no Brasil, com esse negócio de um plano econômico atrás do outro”. Apesar das tentativas frustradas como pequeno empresário, Britvs não desiste. Outro projeto que ele está articulando é a grife do Katteca. A idéia é criar camisetas promocionais tendo o indiozinho como tema e vendê-las em regime de exclusividade numa das lojas de Goiânia. “Dessas de Shopping Center”, ele sonha.

A produção, ele diz será terceirizada. Afinal, ser empresário é muito arriscado. Uma iniciativa que já está dando retorno é a cessão da marca Katteca para alavancar a venda de alguns produtos ou auxiliar na divulgação de eventos. Britvs tem outros planos, dentre eles, passar uma temporada nas praias do Nordeste, de onde enviaria a tirinha via Internet, e vender a sua criação para outros jornais de outros estados do Brasil. Katecca  agora é busines.

 “Jesus, amado!”
“Eu nunca pensei em ganhar dinheiro. Todo artista é meio doido, não dá valor ao dinheiro e com isso eu perdi tempo e boas oportunidades”, ele diz. Britvs conta que o despertar aconteceu com a chegada da adolescência das suas três filhas e a necessidade de lhes dar uma boa educação. A primeira delas, uma simpática morena, revela durante a entrevista sua intenção de prestar vestibular para o curso de Jornalismo e recebe do pai um olhar cético. “Jornalista ganha muito pouco, minha filha”, ele diz com ar reflexivo.

Britvs viveu em Goiás 40 dos  48 anos de sua vida (atualizando o texto para 2023: 63 dos 71 anos de vida). O porte meio atarracado e o impagável bordão “rapaz!”, que os muitos anos de contato com a goianidade não conseguiram extinguir, dão ao criador do Katteca um jeito meio bonachão. Basta meia hora de conversa com este senhor de cabelos já um tanto grisalhados para ter-se a impressão de que já o conhecemos há pelo menos uma eternidade.

Na saída, a senhora Brito gentilmente me oferece uma xícara com café e, por todos os “Jesus, amado!”  que o Katteca já pronunciou, é impossível não relacionar aquela mulher tão prestativa com a adorável Karmita, companheira e freio de mão dos excessos do nosso herói. A vida imita a arte? Quando ligo para o Jávier Godinho e tento explicar que estou trabalhando numa reportagem sobre o Katteca, ele atropela a minha apresentação e dispara: “O João Luiz de Brito é o Katteca, o Katteca é o João Luiz de Brito”. Fiquei entendido.  


João Luiz Brito Oliveira Britvs Katteca Obituário Luís Cláudio Guedes Cartum Cartunista
P U B L I C I D A D E