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Goiânia, 20/04/24
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Foto: Marina Moreira/Tribuna do Planalto

Contardo Calligaris, em entrevista em 2004: "O que decide nossas escolhas políticas e sociais não é necessariamente nosso interesse concreto"

Contardo Calligaris: ‘A única culpa que dói mesmo é a culpa de não ter feito o que a gente desejava’

30/03/2021, às 16:05 · Por Eduardo Horacio

O psicanalista ítalo-brasileiro Contardo Calligaris (1948-2021), que morreu nesta terça-feira, 30, em São Paulo, concedeu entrevista em junho de 2004 a este repórter. Como pequena homenagem a um brilhante pensador, a entrevista será reproduzida na íntegra aqui.

Contardo disse na entrevista, entre outras coisas, que as “pessoas desaprenderam a morrer” em função do hedonismo. “Nosso hedonismo é muito mediano, se não medíocre, na verdade. Mas o problema principal de nossa relação com a morte é o seguinte: para nós modernos, a vida que importa é a nossa, a vida do indivíduo, não a vida da comunidade, do vilarejo, da nação etc. Consequência: temos a sensação (justificada) de que, quando a gente morre, acaba a festa”, afirmou, na época, ao repórter Eduardo Horacio. Ele ainda completou: “Que o Brasil, nosso vilarejo ou nosso clube continuem depois de nossa morte não é algo que nos console além da conta. A morte, portanto, torna-se uma tragédia”. E lamenta que a maioria de nós “sonha mais com a falta, a espera, o anseio do que com a tranquilidade de quem aproveitaria a vida”.

Na entrevista, ele também não esconde sua ‘birra’ com os anos 90. Para ele, foram anos em que a “ganância despudorada de cada um” prometia o paraíso, realizando o devaneio mais otimista do liberalismo. Otimista, lá em 2004 ele arriscava a hipótese de que a utopia da riqueza fácil tinha acabado e as preocupações propriamente políticas estariam voltando de alguma forma.

Muitas das perguntas da entrevista giraram sobre seu livro Terra de Ninguém, lançado pela Publifolha naquele primeiro trimestre de 2004. Antes ele foi autor também dos livros Hello Brasil! (Escuta, 1992) e Crônicas do Individualismo Cotidiano (Ática, 1996), entre outros. Doutor em psicologia clínica, foi ensaísta do jornal Folha de S.Paulo até sua morte (ocorrida nesta terça-feira, 30 de março de 2021). Já clinicou paralelamente entre Estados Unidos, Itália e São Paulo por dez anos e atualmente estava mais fixo ao Brasil.

Com 56 anos (em 2004), ele já tinha sido professor de estudos culturais na New School de Nova York e Antropologia na Universidade da Califórnia em Berkeley. Na entrevista que pode ser lida a seguir, ele fala também de amor, idealização, comportamento humano, morte, guerras, hedonismo, violência e gozo. Fala de culpa: “A única culpa que dói mesmo é a culpa de não ter feito o que a gente desejava”. Sobre o amor, concorda com seu colega de profissão, Jurandir Freire Costa. "Aprendemos a amar nos romances do século 19 e nos filmes do século 20."

Não recusou nenhum assunto e, como um bom profissional, não se escondeu atrás do jargão da profissão para camuflar suas ideias. A entrevista foi publicada originalmente, na época, na edição 915 do caderno de Cultura do jornal Tribuna do Planalto, em 20 de junho de 2004.

Eduardo Horacio – Em Prosperidade e miséria da década que acaba, do livro Terra de Ninguém o senhor diz que a década de 90 quis roubar a democracia. Na década atual houve inflexão para outro rumo ou aprofunda-se o que aconteceu nos anos 90?
Contardo Calligaris –
É cedo para dizer. Minha birra com os anos 90 (sobretudo nos Estados Unidos) é que foram anos em que a ganância despudorada de cada um parecia prometer a felicidade e a prosperidade de todos. Era, em suma, a realização ilusória do devaneio mais otimista do liberalismo. O fato é que hoje o sonho da riqueza fácil acabou e a complexidade do conflito em curso, armado ou não (no Iraque, no Oriente Médio e, em geral, entre primeiro e terceiro mundo), introduz no cotidiano de todos preocupações propriamente políticas.

Eduardo Horacio - Em A Europa apavorada consigo mesma o sr. evidencia um dilema europeu: ter quase um aposentado para cada dois trabalhadores ativos e, em vez de se mostrar receptivo a imigrantes, se fecha cada vez mais. Se o ciclo é irracional, por que ele não se quebra?
Contargo Calligaris -
O que decide nossas escolhas políticas e sociais não é necessariamente nosso interesse concreto. As nações da Europa, por exemplo, são constituídas a partir do sentimento de um destino comum étnico e histórico. Nisso, elas são muito diferentes de qualquer nação americana. Inevitavelmente, elas vivem a imigração (que, claro, já as transforma) como o risco de perder sua identidade fundamental. Será que isso mudará com a extensão da União Europeia? Duvido… Embora receber imigração seja o maior interesse (quase uma necessidade de sobrevivência) da Europa, a vontade de manter e reproduzir sua identidade cultural pode ser (e é) mais forte.

Eduardo Horacio - Ainda sobre ciclos irracionais, combater terrorismo e ditadura com ataques ao Iraque e ao Afeganistão não acaba por produzir exatamente o contrário do efeito desejado? Não faz o risco de atentados terroristas ficar ainda maior? Se sim, por que o ciclo não é quebrado?
Contargo Calligaris -
É um pouco a mesma coisa que respondi antes: o interesse concreto não é o que comanda nossas decisões. Faço uma diferença entre a campanha do Afeganistão (em que se tratou de atacar um Estado que se tornara propriamente terrorista) e a campanha do Iraque, cujas razões são, no mínimo, problemáticas. Mas, de qualquer forma, em ambos os casos, a resposta americana não pode ser entendida só a partir de um cálculo "racional" ou razoável, tipo: vamos fazer o que precisa para que o terrorismo nos deixe em paz. Demonstrar para eles mesmos sua própria capacidade de reagir pode ter sido, para os americanos, tão importante ou mais importante ainda do que inibir os inimigos. É frequente, aliás, que a gente não entre em guerra para algum cálculo racional (qual seria o cálculo racional dos terroristas de Al Qaeda?). A decisão de combater responde a mil outras necessidades. O "efeito desejado" pelo governo americano não era tanto a tranquilidade (relativa) dos lares, mas, por exemplo, uma declaração: não mexe comigo ("não me pise" é o primeiro moto nacional dos Estados Unidos).

Eduardo Horacio - O Brasil é o segundo país do mundo que mais gasta em cirurgia plástica e remédios para emagrecer. O sr. tem alguma hipótese que explique por que no Brasil a preocupação com o corpo é tão forte assim?
Contargo Calligaris -
As respostas clássicas são: penúria de referências simbólicas, cultura do corpo e do consumo, como maneiras de afirmar a legitimidade do poder. Ou seja, sou membro da "elite" porque tenho mais sapatos e porque sou mais "bonito". Essas respostas deveriam ser aplicadas às classes dominantes, claro.

Eduardo Horacio - Filmes e livros têm denunciado os chamados manicômios. Dois exemplos: Bicho de Sete Cabeças e Garota, Interrompida. Como o sr. analisa o atual índice de internações psiquiátricas?
Contargo Calligaris -
A instituição manicomial está acabando. O problema é que, no Brasil, como alhures, a instituição manicomial foi fechada sem que a gente tivesse os meios de criar dispositivos que preenchessem algumas funções do manicômio que continuam faltando. Acabou o asilo, mas onde estão os serviços comunitários que eram parte integrante do projeto da antipsiquiatria?

Eduardo Horacio - Freud foi o primeiro a mostrar que sempre que um desejo é idealizado em pensamento, produz culpa, independente do seu conteúdo. A mulher e o homem moderno, casados, ainda sentem culpa por sentirem tesão por outro?
Contargo Calligaris -
Para a psicanálise, a única culpa que dói mesmo é a culpa de não ter feito o que a gente desejava. Somos patologicamente culpados só de trair a nós mesmos.

Eduardo Horacio - É comum ouvir que homens e mulheres conservadores traem mais que os independentes, já que os independentes têm relações mais transparentes. Procede?
Contargo Calligaris -
Não procede muito bem. Pois as pessoas ditas "independentes" (mulheres ou homens), em geral, vivem uma verdadeira obrigação de independência, fazem um esforço danado para mostrar a si mesmas e ao mundo que elas são independentes. Você já reparou que a independência é uma obrigação pesadíssima?

Eduardo Horacio - No texto Um (discutível) conselho para casais o sr. faz duas perguntas interessantes e eu gostaria que o sr. respondesse aqui na entrevista. São elas: será que existe um amor em que não atribuamos a nosso parceiro alguma qualidade extraordinária que de fato ele não tem? Será que uma relação em que não idealizamos nosso parceiro ainda é uma relação de amor?
Contargo Calligaris -
A verdade é que não sei. De uma certa forma, sem idealização os sentimentos se tornam difíceis. Amar, odiar (e tudo o que está no meio) significa para nós conceber (idealizar) um ao outro de tal forma que seja bom ser odiado ou amado (e tudo o que está no meio) por ele/ela. Ou seja, se te odeio (ou te amo), sempre te imagino de tal forma que seja "bom" ser odiado (ou amado) por ti. O que seria nossa vida sentimental sem isso?

Eduardo Horacio - O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu livro Sem Fraude Nem Favor (Rocco) escreve que o amor não é natural; que é uma invenção, como a roda, o fogo e o casamento. Diz ainda que ele é uma crença historicamente construída. O sr. concorda com isso?
Contargo Calligaris -
Concordo plenamente. Aprendemos a amar nos romances do século 19 e nos filmes do século 20. O amor é um drama (ou uma comédia, depende) que faz parte do repertório de cada cultura.

Eduardo Horacio - Em Conselhos para não gastar demais nas férias o sr. diz que as pessoas desaprenderam a morrer. Que consequências boas e ruins o mundo sofre em função desse jeito de viver, digamos, hedonista?
Contargo Calligaris -
Nosso hedonismo é muito mediano, se não medíocre, na verdade. Mas o problema principal de nossa relação com a morte é o seguinte: para nós modernos, a vida que importa é a nossa, a vida do indivíduo, não a vida da comunidade, do vilarejo, da nação etc. Consequência: temos a sensação (justificada) de que, quando a gente morre, acaba a festa. Que o Brasil, nosso vilarejo ou nosso clube continuem depois de nossa morte não é algo que nos console além da conta. A morte, portanto, torna-se uma tragédia.

Eduardo Horacio - O sr. diz que se idealiza no mundo não o convívio, mas, sim, a perda, a saudade, o luto, ou, no máximo, a procura. É possível o mundo um dia caminhar para desejar e idealizar o convívio?
Contargo Calligaris -
Seria preciso que houvesse uma grande mudança cultural. Nossa cultura implica uma constante insatisfação; sem isso, acaba nosso modo de produção (fundado num crescimento sem fim, ou seja, em desejos insatisfeitos). É lógico que isso valha também para as relações. Sonhamos mais com a falta, a espera, o anseio do que com a tranquilidade de quem aproveitaria a vida.

Eduardo Horacio - Em O Incrível Hulk em todos nós o sr. diz que é um traço constitutivo da modernidade imaginar que a violência é uma espécie de autenticidade perdida. Como esse modelo foi construído na mente das pessoas?
Contargo Calligaris -
A modernidade começa quando a gente pára de acreditar que a autoridade seja uma questão de direito divino ou de sangue. Ou seja, quando a gente entende que é dominado por forças contra as quais podemos lutar. A violência, no fundo, sempre nos aparece como a verdade (eventualmente escondida) atrás das relações. Isso nos dá a liberdade de reagir, de nos rebelar. Em compensação, isso faz da violência um valor.

Eduardo Horacio - O constante apelo ao gozo, tão pregado pela cultura moderna, não acaba produzindo mais angústia do que gozo?
Contargo Calligaris -
Mas o apelo ao gozo não é nenhuma garantia de satisfação. Ao contrário, ele é feito para continuar sendo o que é: um apelo sem “orgasmo” conclusivo ou com pequenos “orgasmos” parciais e incompletos.

Eduardo Horacio - Há uma pergunta clássica que sempre permeia julgamentos de criminosos. É possível que alguém responda moralmente por seu inconsciente?
Contargo Calligaris -
É indispensável. A psicanálise (e, no fundo, qualquer psicoterapia) não seria praticável sem a ideia de que cada um é responsável, inclusive e sobretudo, por seu inconsciente.

Eduardo Horacio - Há psicanalistas que ficam amigos de seus pacientes. O que o sr. pensa a respeito disso?
Contargo Calligaris -
Mas eu já sou amigo de meus pacientes. Tento ser, aliás, seu melhor amigo.


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